Capítulo 1 - Cidade das Palavras Vivas

Imagine abrir a caixa do correio e haver lá uma carta com um selo de cera que tem impresso um chapéu triplo de bobo da corte, grande surpresa, não é?! Segue a carta:

“Que tal um convite para passear? No geral este não é um convite difícil de se aceitar, confiante nisto é que o faço. Com grande prazer o convidamos para visitar nossa cidade turística chamada Babilógos.

Nesta viagem você descobrirá alguns lugares e construções que tem muito a dizer. Verdadeiro turismo é esse que oferece a contemplação de paisagens interiores. Aproveite para esquecer um pouco o conhecido e descobrir o novo, fascinar-se com as surpresas. Será uma grande alegria para mim se você se surpreender, mais alegre ainda ficarei se você se surpreender por identificar-se com as surpresas em um misto de descobrir o inesperado no óbvio, descobrindo também a si mesmo como observador e observado.

Tenha certeza que em toda a cidade está a intenção de guardar surpresas e muitas delas poderão até passar despercebidas se você não estiver atento. Os pequenos detalhes de uma construção às vezes contém fórmulas sintéticas de tudo o que se quer mostrar.

Naturalmente o agrado e o desagrado surgirão igualmente, um mais outro menos, quem sabe? Seja como for, tudo poderá agradar quando se observa o labor incansável para manter a aparência concreta da cidade imaginária que é sustentada no ar. Há aí um espetáculo, um rei, um bobo e cidadãos-palavras que se desdobram para que nada falte. Você poderá até vê-los e comover-se com o labor infatigável deles. Seja nos bordéis ou nas igrejas, nas grandes academias filosóficas ou no circo bobo de um palhaço só, seja nos coretos da alegria ou nos ermos da tristeza, para tudo houve um labor imenso. Afinal nenhum maratonista jamais conheceu esforço igual ao de trazer do nada, do éter, sua própria substância com as formas precisas do que nela se delineou pelo desejo vivo de si mesmo.

Quem sabe por isso o rei desta cidade seja sábio e maluco, vivendo uma exaltação de êxtase contínuo. Sabe lá onde ele transita e o trabalho que tem para ir e vir e fazer os cidadãos trabalharem incansavelmente! Mas dele você também se encantará, talvez o conhecendo em pessoa ou o reconhecendo no que fez. Talvez justamente por desconcertar e assim consertar ele seja rei. Eu, teu anfitrião e bobo da corte, tentarei o agradar o mais possível. Mas saiba que não poderei deixar de rir se você tropeçar em um paralelepípedo. Veja bem essa palavra: pa-ra-le-le-pí-pe-do. É mesmo uma palavra feita para fazer tropeçar quem anda pela leitura.

Siga-me e quem sabe você chegue a algo importante. Mas antes me diga: O cara ou A coroa? Bem, não importa a moeda está no ar e tem um lado só. Onde ela cair para lá iremos, tudo será definido pela sorte, como se o acaso não fosse um cálculo que se perdeu, mas que sozinho chega à exatidão. Confuso?! Também achei! Por isso tirarei a linha do comFuso e encherei o caminho de pistas para dizer aonde se está indo. Talvez haja um destino a se cumprir. Quem sabe?! Venha à nossa cidade, viandante! Veja que o tempo é favorável à exploração e ainda que chova aqui e ali, ainda que encontre com arruaceiros, verá sem dúvida o fantástico e o belo e descansará em graciosos regatos, chegando ao fim da aventura mais rico do que quando entrara.” 

 Daquipralix Voltarindo “O Bobo” 

Depois de longa viagem em uma jardineira verde, por lugares áridos e espaços amplos, o motorista o manda descer e seguir uma estrada deserta. Siga por ela, sem temor! Murmúrios logo hão de colorir o vazio da estrada e o ar se encherá de uma canção urbana de cidade pequena. Eis que chega você, nobre visitante, ao pórtico de entrada da cidade! Seja bem-vindo! Quanto nos honra sua presença! A cidade começa a existir agora com sua visita. Se não há você para passear por ela, ela simplesmente não existe. A matéria dessa cidade é a memória e a palavra e sem você por aqui nada teria sentido.

Mas, veja lá quem vem chegando às cambalhotas, piruetas e saltos! É seu cicerone, Daquipralix Voltarindo. Muito elegante e bem vestido com sua roupa de pierrot palhaço, essa figura magricela e bem humorada será companheira de viagem e guia turístico. Conhecedor mais profundo da história da cidade não há, companhia mais alegre e estimulante também não há. Desfrute de seu passeio, pois está em boas mãos. Ei-lo em sua frente desfiando um cem número de mesuras e saudações para a pessoa mais importante no dia de hoje, você! 

Fala Daquipralix: 

-Nobilíssimo viandante que chega ao pórtico de entrada de nossa cidade Babilógos. Seja bem-vindo e que os deuses da palavra e da comunicação, Hermes Mercúrio, Zeus-Júpiter, Odin-Pai de todos, iluminem seu caminho. Que as musas da poesia e da memória tornem sua estada ensolarada e florida. Que o espírito dos heróis, poetas e aedos de todas as épocas te acompanhem na venturosa vereda que se abre para ti. Logo verá que o estilo de nossa cidade é original e guarda ainda o requinte de épocas passadas. Em verdade sua moda não se acaba ou envelhece, pois sua arquitetura toda é a da palavra. Entretanto, cabe ressaltar aqui que a palavra é viva! Isso mesmo, a palavra aqui é viva! 

-Te contarei agora a história da cidade:

O Rei sem nome era rei das palavras e decidiu criar uma cidade. Para criar sua cidade o Rei sem nome usou o poder que tinha com as palavras. Então, ele deu uma ordem dizendo: 


PALAVRA 

PRA LÁ VÁ 

PRA LAVRAR 

A palavra obedeceu e lavrando o mundo real que era muito duro e objetivo, fez florescer significados, entendimento e discursos que cresciam como se fossem filamentos de pensamentos se erguendo na superfície das coisas. Esses filamentos se entrelaçavam tornando-se aos poucos uma construção viva e muito sólida que tornou-se a cidade das palavras.

O Rei sem nome usando de inteligência e sensibilidade criou poesias para cada lugar da cidade, organizando pensamentos e sentimentos por regiões que a eles se ligavam. E por estes lugares é que passearemos.

O Rei sem nome era um alquimista e ele descobriu que podia extrair a essência das palavras e combiná-las de muitas formas diferentes, obtendo muitos resultados magníficos, inesperados e interessantes. No seu laboratório ele decompôs as palavras chegando nas menores partículas possíveis. Ele as recombinou e começou a criar palavras novas com efeitos inusitados e chegou a fazer mais ainda! Ele deu vida própria às palavras que puderam, então, falar delas mesmas e se tornaram cidadãos-palavras. Babilógos é isso, a cidade das palavras vivas, o lugar onde as palavras podem falar de si próprias. Houveram os que comparassem o Rei sem nome com alquimistas como Nicolas Flamel e Paracelso, afinal ele revirava os elementos da vida comum os decompondo e recompondo nas palavras sempre em busca do ouro filosofal. Porém, talvez se devesse dizer que havia também nele algo de Doutor Fausto. Algo de um buscador que se deparava também com a frustração e com o tédio no alto de sua erudição e isolamento. Talvez para ele a palavra escrita, que um dia fora um namoro com a vida, mais tarde tenha se tornado busca de uma redenção, da criação de seu próprio paraíso no sentido que extraía como quintessência das palavras mais banais. Ele sabia que para chegar ao ouro precisava do chumbo e não negava a vida no que tinha de mais pesado. Ele sabia que o que é pesado cai e que aquilo que não queremos que caia deve ficar no chão. De outro lado não ignorava que a água e o éter não podem ficar no mesmo lugar para sempre, sabia que eles evaporariam chegando ao céu. E assim operava o Rei alquimista, solvendo e coagulando e fazendo de seu retiro o abrigo das palavras. E como ele não temia a imundice ou brincar com todas as substâncias perigosas dos conceitos e dos preconceitos, alguns talvez o considerassem mais como Doutor Jekyll e Mister Hyde. Talvez as palavras alquímicas do Rei sem nome e sua manipulação, que mais parecia com habilidades de malabarista e contorcionista das palavras, fossem seu escudo de defesa em um mundo que inevitavelmente roubava seu isolamento o empurrando para o convívio com todos que não entendiam a arte real que ele exercia. Como é recomendado por Flamel é necessário ter vidros e potes de louça para suportarem a acidez de muitas substâncias. Contudo, parece que a acidez escapuliu dos vasos do Rei sem nome e muitos o rechaçaram como o monstro de Frankestein. E por querer encontrar e dar a vida às palavras talvez ele fosse mesmo uma espécie de Victor Frankestein. É possível que antes de seu desaparecimento, seu projeto maior fosse restaurar o colorido do mundo que havia desaparecido entre o ferro, a pedra e as máquinas da cidade dos homens. Seria esse um sonho muito audacioso? Haveria um risco nisso? Ou tudo que produziu eram meras travessuras que em nada afetavam a realidade?

Houve quem admoestasse o Rei advertindo-o que algum efeito imprevisto tinha nisso de dar vida e autonomia às palavras e que isto poderia representar perigo para o Rei sem nome. E talvez seja a busca de corrigir esse efeito que levou o Rei sem nome a se ausentar da cidade e hoje o palácio real está vazio. Ou talvez isso seja mais uma brincadeira do Rei sem nome que está por aí, brincando de esconder-se na sua cidade. De qualquer jeito o palácio real está abandonado e a fonte real, que existe dentro do palácio, está cada dia mais seca e por isso deixaremos a visita ao palácio para mais tarde. A fonte real é o início de tudo, mas inverteremos a trajetória e deixaremos o início para o fim. Como se ficar velho nos permitisse ser criança, como se a tolice e o humor pudessem nos encher de sabedoria. Pois que é triste ver a fonte real com seu mistério insondável secar até quase fazer-se extinta. De lado com essas coisas, pois agora é hora de conhecer a cidade e devemos nos encher de ânimo, vitalidade e entusiasmo. Iniciaremos por seu pórtico onde vamos ver o que significa dar vida às palavras e deixá-las falar por si. É hora de conhecer a cara da cidade!